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A vida como ela é

 

Entre livros, textos, murais de fotos, traquitanas e acúmulos de uma vida inteira dedicada às artes, aos filhos e aos netos, uma das atrizes mais pops do País recebe KAZA em seu apê paulistano

Por Allex Colontonio / Fotos Victor Affaro

A vida como ela é

Até tentei evitar o clichê, mas é impossível: entrar na casa de Regina Duarte é como visitar um velho amigo. Há uma atmosfera de familiaridade tão densa no ar que dois passos e meio após cruzar o hall de entrada, a gente vai logo sentindo vontade de tirar os sapatos. Boa parte da sensação pode entrar na fatura dos retratos espalhados aqui e acolá, com um dos rostos mais populares do País – um daqueles que nós, uma geração antes e outra depois da nossa, crescemos vendo em personagens icônicos. Pense na libertária Malu Mulher (1980), nas quase almodovarianas Viúva Porcina (Roque Santeiro, 1985), Maria do Carmo (Rainha da Sucata, 1990), nas muitas Helenas de Manoel Carlos e em personagens biográficos como Chiquinha Gonzaga (1999). Não importa se você é noveleiro ou não: todo mundo conhece Regina Duarte, intimamente. Cinquenta anos separam a estreia nos palcos, aos 16 anos, da antidiva que nos recebe de sorriso e braços abertos, cabelos presos numa maçaroca engraçada de bobes gigantes, silhueta impecável embrulhada no roupão. Bonita e jovial (mesmo antes de a nossa maker sacar seus pincéis), simpática e sem afetações, mas decidida doa a quem doer – não tente convencê-la a posar com um móvel que não tem a ver com ela ou com alguma peça chiquérrima de design para deixar o cenário mais fotogênico –, Regina cravou suas impressões digitais em cada perímetro do amplo apartamento avarandado nesse prédio modernista nos Jardins, São Paulo. E é exatamente o estilo simples da menina do interior que nasceu em Franca mas não se desconectou da essência depois de rodar o mundo, mais a casualidade pulsante do espaço habitado, que fazem com que a casa abrace quem chega. O endereço tem área social imensa, com dois grupos de estar que combinam sofazões de sarja branca com móveis robustos de fibras naturais. No hiato entre as áreas, um piano preto de meia cauda – sua mãe era pianista e a família inteira muito musical. Ela não toca como os irmãos, mas adora receber amigos em saraus e leituras de textos que atravessam as madrugadas. Nos fundos, uma das duas salas de jantar (sim, há duas no apê) com móveis pesados de madeira, produção brasileira dos anos 1950 aos 1970. Boa parte tem shape rústico colonial, e foi herdada da família do marido, pecuarista que vive na propriedade do casal, em Barretos. Pelas paredes, trabalhos de Sergio Ferro e Claudio Tozzi, um retrato seu clicado pelo amigo (e lenda da fotografia) Luiz Tripolli, um óleo de Jô Soares – “ele pintou pra mim”, conta. Num dos cantões do living, Regina armou seu home-office, com mesa e computador virados para uma “parede da memória” (como na canção da Elis Regina, de quem foi amiga), onde fotos suas com os netos, registros de carreira, recortes de jornais e assuntos cotidianos saltam aos olhos. “Tenho um escritório menor aqui do lado, mas mandei fazer essa bancada para não ficar isolada. Assim me sinto incorporada quando meus netos estão por perto”, grita lá de dentro, enquanto termina de se arrumar para os cliques. “Meu trabalho exige muita disciplina. A casa também é o meu laboratório, mas costumo levar o script para o parque, vou repetindo, repetindo para memorizar. Não preciso de silêncio absoluto. Quando você tem três filhos e quatro netos, se acostuma a decorar no meio da bagunça.”

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Há toda a sorte de livros e revistas espalhados pela sala, pelo chão, transbordando das estantes e subindo pelas paredes, em pilhas vertiginosas. Regina lê muito, anota, marca, cola post-its, recorta jornais. “Literatura é um instrumento essencial para a minha vontade de me tornar uma pessoa melhor”, diz.

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E ela ressurge simplesinha – e deslumbrante – a bordo de blusa e saia nudes levíssimos de seda, conjunto que trouxe de sua última viagem a Paris, dois meses antes, e com a cabeleira preta livre dos maxibobes engraçados. E vai tagarelando enquanto sorri para a lente de Victor Affaro. “Você está curioso sobre as bonecas, né?”, pergunta quando me flagra fuçando os brinquedos e traquitanas que se empilham nas estantes. “Já fui mais compulsiva, descia do avião comprando tudo. Hoje sou mais seletiva, demoro para escolher. Mas muitas delas são presentes dos amigos. É aquela coisa: as pessoas descobrem que você gosta de algo e, de repente, tem uma coleção. No meu caso, foram as bonecas.”

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Affaro sopra no meu ouvido que “é impressionante como ela cresce na câmera”. É claro que Regina, a tal namoradinha do Brasil, já ganhou a equipe inteira, apesar de se recusar a posar aqui ou ali, por esse ou aquele motivo. Coisas da tal privacidade, tão cara – e rara – aos astros de seu calibre.

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Mulher culta, inteligente, conhecida por suas convicções políticas e pela defesa ferrenha de suas ideias, a atriz já pagou caro por não ficar em cima do muro diante de nada. “Estava em casa ouvindo Elis outro dia e lembrando que sou de uma geração que fala o que pensa mesmo.” O momento atual é de transição. “De vida, de idade. Minha professora de francês diz que 66 é um número de guinada na filosofia... bom, agora não me lembro qual é o nome da filosofia, mas não importa. O fato é que sinto muito essas mudanças na vida prática. Começo a encarar as coisas de um jeito menos complicado, muito novo. Tem uma idade cronológica que não corresponde com a idade física e mental. Estou me adaptando e a casa reflete alguém que já fui, por isso é importante mexer um pouquinho”, diz sobre o endereço que em breve receberá outra reconfiguração de Antonio Ferreira Jr., amigo e arquiteto responsável pelo look do seu apê anterior e pelo “transplante” do décor, 14 anos atrás, se ninguém errou a conta.

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“A Regina me disse uma frase que sempre uso: a casa tem que ter a cicatriz de quem mora. Achei genial. Ela é uma diva que não se contaminou pelo sucesso: carinhosa, generosa e muito família”, conta ele.

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“Tenho caixas e caixas onde guardo lembranças de tudo o que faço. Nessa fase de transição, tô aproveitando pra fazer uma reciclagem. Guardando coisas importantes com muito carinho, mas doando outras tantas”, finaliza depois de trocar o look nude e sorrir para nós, outras trezentas vezes, até nos acompanhar de volta à porta. Quase calcei meus sapatos pela segunda vez.

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