Natal a seus pés
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Enquanto houver sol
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por Patrícia Favalle fotos Alain Brugier
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Com os olhos no design e os pés na areia, a arquiteta Milene Cara interpreta formas ousadas da cena contemporânea na casa de praia projetada por Carlos Warchavchik e Ana Paula Calbucci, em Ubatuba
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Assentada num trecho da Praia Vermelha, em Ubatuba, litoral paulista, a casa “pé na areia” assinada pelo neto do legendário Gregori Warchavchik, Carlos, em parceria com a arquiteta Ana Paula Calbucci, optou pelos contornos caiçaras ligados ao traçado modernista. Com evidente quê rústico impresso na fachada despida de revestimentos rebuscados, a construção elegeu as madeiras de demolição da peroba-rosa e da maçaranduba nos caixilhos, nas vigas do telhado e no forro, alinhada ao piso de cimento queimado e à massa “de colher” aplicada sobre as paredes. “Essa dinâmica garantiu um resultado plástico à obra”, diz Ana Paula.
Trata-se de uma residência não linear, desenhada a partir de uma laje descolada do chão – detalhe que a protegeu da umidade e do mofo – com skyline privativo para o mar e para a Mata Atlântica. O sobrado pontuou a suíte principal no segundo pavimento, onde a vista panorâmica alcança tais belezas intocadas, apreciadas a partir da cadeira de balanço de couro transpassado, margeada por fotografias de Christian Cravo. A ligação dos andares é feita por uma espécie de túnel de paredes irregulares, recheado de degraus de concreto, cobertos por folhas amadeiradas.
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O restante do layout social foi definido no térreo, cujo destaque recai sobre a sutil cobertura que delimita o início da parte íntima por aqueles metros quadrados. Somam-se ali três suítes e cozinha, que é integrada às salas e à churrasqueira. “Merece atenção a saleta onde está o piano, mais afastada dos demais recintos para que o proprietário mantivesse a agenda de ensaios. Tivemos que inserir um desumidificador potente no local, em razão das características climáticas da região”, continua Ana Paula.
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Outro fator importante observado na edificação é a singularidade arquitetônica em consonância com as especificidades da natureza, a exemplo das poucas interferências no meio ambiente e dos cuidados com a preservação das formações nativas de gramíneas de jundu. Com a premissa de que o endereço de veraneio deveria unir despojamento e harmonia, o décor foi tramado com vieses minimalistas e ao mesmo tempo acolhedores. “Foi a partir desse contexto que tive a ideia de impor elementos que permitissem ampliar a presença do design contemporâneo”, relata a arquiteta Milene Cara, convidada por Kaza para criar interposições lúdicas e rítmicas no espaço, com cor e movimento.
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Logo no hall de entrada, a divisória de pedras ganhou a companhia de texturas sacadas das cordas e das cestarias. No meio do caminho entre as extremidades do sweet home, o riscado sinuoso da bancada de tora foi acompanhado pelos bancos adornados com azulejaria de Alfio Lisi. Passando para a varanda debruçada sobre a paisagem verdejante, o mobiliário orgânico de Hugo França cintila junto às padronagens étnicas que se conectam à suntuosa chaise Shadowy, de Tord Boontje. “O contraste entre o branco dos acabamentos e o brutalismo de algumas peças compõem o recorte de grande personalidade revelado ali”, diz.
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O living traz a simetria marcada no jogo de poltronas encapuzadas e de almofadas que vão do azul ao pink. O contraponto é dado pelo tom laranja e pela tela marejada que faz par com o abajur índigo. No jardim, propositalmente estacionadas sob o sombreado da imponente árvore de troncos austeros, estão a cadeira ICZero1, de Guto Índio da Costa, e a mesinha elaborada por Mina, bisneta do clã Warchavchik e aluna de Milene no EAD. Já nas cercanias de areias claras, o divertido mobile Puppy, de Eero Aarnio, marca o território com bom-humor, bossa semelhante adotada pelo descolado Ploop Stool, de Oskar Zieta, que se refresca do calorão debaixo da ducha.
- E assim, rompendo a equação sistemática do conjunto, o enredo inverte a lógica, sobrepondo a percepção do anexo com a simplicidade cítrica das tangerinas. “Num discurso de oposição, valorizei a elegância casual da morada”, finaliza Milene, enquanto os passarinhos verdes chegam para mordiscar as frutas abertas no grande living semi-outdoor, a dois passos do paraíso.