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Cozinha de Estar

Cozinha de Estar


Uma maçã nunca cai muito longe do pé. Nem goiaba, pêssego ou pitanga. Talvez, por isso, a toca paulistana do designer gaúcho André Bastos traga muito das memórias afetivas – incluindo o pomar – da casa onde cresceu em Porto Alegre

 

POR RICARDO GAIOSO / FOTOS ALAIN BRUGIER

 

 

O PAI, CAÇULA DE UMA FAMÍLIA DE TREZE IRMÃOS, cultivava, além das amizades antigas do bairro, uma forte relação com a comida, que vinha guarnecida de um ritual cinematográfico, quando entravam em cena arranjos de orquídeas e antúrios costurando uma vistosa trama de cores e texturas que mais lembravam uma Santa Ceia no Jardim do Éden. Definida a intervenção natural, velas acesas alternavam a iluminação das excêntricas louças encontradas em antiquários, taças Saint Louis, em contraste com as delicadas toalhas de renda enviadas por uma tia de Aracaju para a família. Ali, cada integrante do clã assumia um papel da pequena fábrica de virtudes, exceto pela mãe, que, ao contrário do que ditavam as regras daqueles tempos de cozinha matriarcal, era proibida de atravessar o território, sob ameaça de botar tudo a perder. Só chegava na hora do tilintar das tampas, momento quando a culinária ganhava sabor de histórias de infância e abria a cerimônia do ritual familiar.

 

 

Munido dessa riqueza de lembranças, André botou o pé na estrada, e naturalmente foi reservando à cozinha lugar de destaque nas casas onde viveu em São Paulo. Após o falecimento do pai, há mais de 20 anos, suas receitas gastronômicas se tornaram o elo mais vivo entre os dois. “Foi a forma mais deliciosa e real que encontrei de reviver aquela época com o meu pai”, conta André, com olhar fixo para o amplo skyline que avança sobre a Avenida Rebouças, apesar de enxergar outro lugar.

 

 

A vista era condição sine qua non definida na hora de comprar seu novo apartamento. Saindo de uma espaçosa casa de jardim na Hípica Paulista, onde vivera por anos, ele teve a sorte grande de acertar no alvo logo em sua primeira visita. Apesar de seduzido com a velocidade de um relâmpago, a ampulheta que separa esse dia e o da mudança, de fato, levou sete meses e ao menos cinco caçambas do gesso que rebaixava o teto e o corredor do apartamento de 220 metros quadrados – as radicais tendências de outrora. Livre, jovem e transgressora, a casa descortina a personalidade de seu morador, com o skyline nervoso de Sampa, com as paredes finalmente livres e com o espaçoso salão emoldurado pela expoente silhueta do bairro dos Jardins, começava, então, a decoração afiada por cobiçadas peças de design do timbre de Aurélio Flores, Gae Aulenti e o duo Eames, lado a lado com jovens designers como Pedro Ávila e Fabrizio Rollo, pontuada pelos aclamados lançamentos do estúdio Nada se Leva (que divide com o sócio Guilherme Leite Ribeiro) para marcas como La Lampe e Larco.

 

 

Nas paredes, a polêmica fotografia do artista goiano Rafael Menôva ganha repertório com as telas de Guido Mondin, Nazareno e Mauro Restiffe. E descortinam a expressão de sua personalidade, “livre, jovem e transgressora”, sotaque e ziriguidum perpendiculares ao mobiliário de linhas retas que vai desde a biblioteca embutida – um verdadeiro convite à contemplação –, até as poltronas e o recuo do sofá, instalado em um suporte de madeira, onde são posicionados os livros, revistas e publicações de arte e design gráfico, os souvenirs favoritos de suas andanças mundo afora. Na bússola do viajante urbano, Tóquio, Berlim e Nova York projetam o fuso dos destinos insólitos onde ele escolhe viver um mês de imersão a cada ano. “Timing perfeito para inspirar o estilo de vida daquele lugar e voltar renovado”, conta André, folheando um antigo álbum de fotografias.

 

 

Ponto de encontro dos amigos, a casa acabou tornando-se o QG ideal de artistas, designers, publicitários e fashionistas, abençoada pelas intervenções gastronômicas intimistas que engatilham o forno e o fogão a pleno vapor. Feito um rito de passagem, os interessados em questão acabam por botar a mão na massa e contribuir para a alquimia desse novo clube de comensais intelectuais. Cozinha de estar, máquina do tempo, com tempero, filosofia e predicado.

 

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