Shangri-lá caboclo
KAZA adentra os domínios rurais de Roberto Mícoli. Um pedaço de paraíso que um dos nomes mais importantes das artes plásticas divide com o cenógrafo Alberto Camarero – e com aves deslumbrantes
POR CYNTHIA GARCIA / FOTOS ROMULO FIALDINI
Na estrada de chão rumo ao sítio do artista plástico Roberto Mícoli e do cenógrafo Alberto Camarero, em Itupeva, uma dúvida: será que Romulo Fialdini conseguirá captar o pavão em toda sua exuberância plumária? O diretor da Kaza, Allex Colontonio, que adora animais, contou sua experiência: “Uma vez, numa foto com pavão, fizemos de tudo pro bicho abrir a cauda, sem sucesso”. Saudados por Durga, a mascote da raça weimaraner; Mané, o labrador; a filha chocolate, Xica; a vira-lata Pretinha e o sorriso do Mícoli, cruzamos o portão emoldurado por bougainvílleas. No pátio – pasme –, um pavão-azul em iridescente majestade! “Agosto a dezembro é época de acasalamento”, explica Alberto sobre os três casais que criam, um deles o raro pavão branco (albino), aves ornamentais e ótimos guardas – que ninguém se aventure a chegar perto!
No aconchego da cozinha de fogão a lenha sobre piso de azulejo hidráulico, o cheirinho do gostoso café em bule caipira vermelho esmaltado acompanhado de broa de milho verde. Com o fogo crepitando, o cenário revela painel de azulejaria portuguesa do século 18, coleções de travessas inglesas, panelas de barro e tigelas antigas adornadas com estêncil floral, além de cestas de frutas, verduras e ovos fresquinhos. Esses colecionadores natos são de Campinas, vivem em um belo apê em São Paulo mas não dispensam o caminho da roça nos fins de semana. Camarero tem suas raízes no teatro. Com o sobrinho, Beto Ferrari, formam a Scenica, empresa cenográfica para eventos: “Já montamos até cascata”. Suas habilidades não param aí: como designer, seu mobiliário em madeira é comercializado pela Etel Carmona, dona de um dos templos do bom design brasileiro. Junto com Leonilson, Jorge Guinle, Beatriz Milhazes, Leda Catunda e Paulo Pasta, Mícoli é um nome estelar das artes plásticas contemporâneas, integrante do movimento Geração 80, ponto de ruptura da arte brasileira. Sua obra – uma homenagem autoral à cor a partir de zonas cromáticas geométricas – integra importantes acervos privados e coleções públicas, como as da Fundação Nemirosky, do Masp e MAC-USP. “De certa forma, ‘escrevo’ com as cores”, diz o artista, que prepara uma individual para 2014 e tem sua trajetória em livro com seu nome publicado pela Bei, com entrevista do antropólogo francês Stéphane Malysse. Lançado em duas edições, uma delas é um objeto-livro com sobrecapa em tela pintada e assinada por ele.
Adquirido em 1983, o terreno de 5.000 metros quadrados acomoda uma casa, projetada pela dupla, forrada de unha de gato com chaminé encimada por pinha colonial. Com simplicidade e sofisticação, a simetria retangular da sala ampla é aprumada pela lareira com azulejos majólico Antiqua verdes e amarelos e, no lado oposto, pela mesa de fazenda de oito lugares com seis cadeiras de medalhão e palhinha e, nas cabeceiras, duas austríacas, século 19. Na parede com pé-direito de 5 metros, coroando o ambiente, duas belas telas de Mícoli. Na área íntima, apenas os dois quartos dos donos e um generoso banheiro coletivo com banheira antiga. O sítio ainda abriga dois ateliês, casa de caseiro, sauna, horta orgânica, piscina com duas raias e uma surpreendente chinoiserie. É o viveiro dos pavões com grande mural ao estilo Gaudí em mosaico azul e branco, criado e executado por Camarero, que representa um conto da mitologia chinesa, inspirado nos desenhos da porcelana Companhia das Índias. Atualmente, a área total do sítio perfaz 12.500 metros quadrados com a compra dos 7.500 metros quadrados do vizinho adjacente, ainda com Mata Atlântica intocada. “Fizemos apenas uma trilha, mais nada”, diz o talentoso Mícoli sobre o sofisticado Shangri-lá caboclo, perfumado pelo manacá, que tem, conforme a música do cearense Ednardo: “Pavão misterioso, pássaro formoso, tudo é mistério, nesse seu voar...”
